quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Cacos

Cacos de sangue e gotas de vidro
No chão e nos punhos fechados
Não havia olhos, tudo tão abstrato
Os pés rasgavam o piso e os medos
Não não sonhava acordado
Os cristais escorriam pelas maçãs
Encontravam se num rio
Desciam pelo ralo
Quantas histórias por contar
Nuvens tomavam forma
Ora um homem
Ora um desespero desperto
As fumaças misturam se no ar
Meu corpo que queima e o cigarro tragado
São etéreos esses delírios
Etílicos talvez
Dessas coisas que só sente quem tem um coração
Não desses carnais e inflamados
Mas um coração de vidro
Que é capaz de sangrar
Como os cacos do espelho quebrado.

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Um conhaque e um maço de cigarros


"Para evitar um equívoco verbal: o que deve ser ativamente destruído
 precisa antes ter sido sustentado com firmeza total;
 o que desmorona desmorona, mas não pode ser destruído"
-Franz Kafka 

Helena se levantou da cama, foi até a velha mesinha de madeira que ficava no canto do quarto e pegou o maço de cigarros, puxou um deles com os lábios, como num beijo demorado. Levou a mão ao bolso do short que jazia no encosto da cadeira e sacou um isqueiro.
A luz da chama titubeante captou a atenção de Júlio, que por baixo de pálpebras preguiçosas olhava o corpo de Helena na penumbra.

- Quê isso? - a pergunta tendenciosa estava carregada de julgamento.
Helena caminha em direção a cama com leveza, enquanto solta a fumaça pelas narinas. Olha pro cigarro em seus dedos e diz:
- Isso aqui? É cigarro... - ela sabia que a ironia irritava Júlio mais do que qualquer coisa.
- Achei que cê tava parando. Tem mais de mês já, apaga essa porra. - não podia esconder sua frustração.
- Eu tô tentando, mas agora eu quero fumar. E eu vou fumar. - a voz firme quase não combinava com ela, ajoelhou-se na cama, com o rosto e os ombros na altura da janela, uma brisa noturna mexia seus cabelos e espalhava a fumaça pelo quarto.
- Tô vendo o quanto cê tá tentando... Cê tem que segurar a vontade, se não cê não para nunca...-Helena o interrompeu-
- Para, cê não é meu pai. Eu sei das consequências, eu sei o que isso causa. Não me enche o saco com essa porra. - o silêncio que seguiu essas palavras era ensurdecedor. Nenhum dos dois dizia palavra.

Júlio se levanta. Sem tirar os olhos da janela Helena o observa com os ouvidos, rastreando o som de seus passos indo para o banheiro, fechando a porta de vidro do box, abrindo o chuveiro, deixando a água cair nos seus ombros sem se mover sob ela.

                                              - um conhaque e um maço cigarros -

A segunda feira seguia calma como era de costume, e como era de costume o bar abriu as dezessete horas em ponto. O dono do bar estava sentado na escada que havia atrás do balcão, escada que conectava o boteco de esquina ao piso superior do imóvel, onde morava com sua esposa e suas duas filhas. A filha mais velha, que não tinha ainda treze anos completos, ninava a mais nova, recém-nascida e setemesinha num balaio acolchoado sobre o velho sofá, atrás daquele mesmo balcão. O homem de meia idade tinha os olhos no jornal em suas mãos, um desses baratos que naquele tempo se comprava por vinte e cinco centavos. Sua audição canina o atina a olhar para além do balcão, um menino se aproximava com uma nota de cinco reais na mão.

- Boa tarde - a voz grave do homem, que se levantava o fazia parecer mais alto. Ele olhava o menino de cima para baixo. - Quê que cê quer?
- Um conhaque e um maço de cigarro, por favor.
Por um momento os dois se olharam, em silêncio o homem grisalho o repreendia com os olhos e uma expressão de negação, sutil, como ele o era. Apanhou o dinheiro e o colocou com as outras notas na caixinha de madeira do lado do pote de moedas. Puxou um maço de Hollywood vermelho que estava no display acima do refrigerador horizontal, sussurrou para si: "o cigarro do sucesso", colocou o cigarro sobre o balcão, junto ao copo de vidro tipo americano. Um olhar para a menina que ninava a outra menina, como se desejasse que ela não o visse naquele momento, enquanto servia a dose de Dreher, olhou de canto de olho para o sofá uma ou duas vezes. Virou-se de costas e pegou um punhado de moedas no pote, as colocou na mesa e separou a parte que cabia ao menino.
- Um e setenta e cinco do cigarro, um do conhaque, dois e setenta e cinco, tirando de cinco fica dois e vinte e cinco... - Com as pontas dos dedos fez duas moedas de um e uma de vinte e cinco deslizarem sobre o tampo de mármore do balcão velho, guardou as restantes. Olhou novamente pro garoto que deixava seu copo vazio sobre o mesmo tampo de mármore. - Cê tá vindo da escola agora? - Perguntou
- Não... - colocou as moedas no bolso sem as contar, acendeu um cigarro e completou - Tô indo pro serviço, vou pegar às dezoito.
O dono do bar sorriu e estendeu a mão para o menino, com duas balas de hortelã entre os dedos. - Então toma pra refrescar a boca antes de começar - ofereceu gentilmente.
- Obrigado, seu Augusto. - pegou as balas e saiu com elas na mão.
Augusto o olhava caminhar até o ponto de ônibus, do outro lado da rua. Não devia ter catorze anos. Olha novamente para a sua filha e em silêncio agradece a seu deus por ter tido uma menina tão correta e dedicada à família.

Júlio sentado no ponto de ônibus termina seu cigarro, tinha algum receio de que alguém de sua família passasse por ali e visse aquele cigarro em sua mão, embora já tivesse ensaiado seu discurso caso fosse flagrado. O ônibus chega, o garoto entra. Só retornaria ao seu bairro oito horas depois, por volta das duas da manhã. Na madrugada, passaria novamente no bar e tomaria mais uma dose. Fumaria mais um cigarro durante a caminhada até o portão de sua casa. Subiria as escadas e sem fazer barulho iria tomar um banho e dormir.

                                                               ----------------------

Helena estava deitada quando Júlio voltou do banho, a toalha molhada estava enrolada em sua cintura, Júlio se encosta na janela e fuma um cigarro, tenta se lembrar do seu primeiro, mas não consegue. Sente-se envergonhado por não conseguir parar. Pensa nas palavras de Helena. Vai até a cozinha, dois copos d'água, bem gelada, pensa nas palavras de Helena, bem geladas. Na pia do banheiro, escova os dentes, vê sua cara no espelho, a não ser pela barba rala e falhada não é muito diferente do menino de catorze anos que começava a fumar em busca de algo que não sabia onde encontrar.
- Amor... Deita aqui... - a voz manhosa e sonolenta que o convidava a se deitar era o suficiente para o fazer parar de pensar nessas coisas. Júlio parou por um instante no umbral da porta do quarto e ficou olhando para o corpo daquela mulher em sua cama, pendurou sua toalha no encosto da cadeira, por cima do short de Helena e foi deitar com ela.