terça-feira, 31 de dezembro de 2019

A hora certa

O Tempo
Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.

Industrializou a esperança,
fazendo-a funcionar no limite da exaustão.

Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar
e entregar os pontos.

Aí entra o milagre da renovação
e tudo começa outra vez, com outro número
e outra vontade de acreditar
que daqui para diante tudo vai ser diferente.

(Roberto Pompeu de Toledo)



O bar estava abrindo quando os dois homens chegaram, o proprietário os conduziu até uma mesa sob a sombra de uma acácia na calçada, o sol do verão estava a pino. Logo veio uma cerveja gelada e dois copos, um dos que chegaram, que parecia mais habituado ao lugar, gritou pro dono do bar pedindo um maço de cigarros e a senha do wi-fi, o outro serviu os copos.

 - Uai Gustavo, pensei que cê tinha parado de fumar - disse Júlio.

 - Tinha, mas é fim de ano, depois do réveillon eu paro de novo... - o companheiro respondeu enquanto abria o maço de Hollywood
 - ...cadê seu isqueiro? - completou a frase estendendo a mão para Júlio, que o entregou um Bic branco, quase sem gás.

Um carro de som tocando uma música natalina insuportável passava pela segunda vez em frente o bar, intercalando os fragmentos de uma canção clássica com a propaganda de alguma loja de móveis e uma mensagem de feliz ano novo, o som alto interrompia as conversas e atrapalhava as senhoras que dentro de suas casas tentavam assistir televisão, esse era o presente de fim de ano daquela loja de móveis para os moradores do bairro Bethânia.

 - ... para os judeus é em setembro, para os chineses é em novembro, e em algumas culturas o tempo nem é dividido em anos, como é na nossa. Isso me lembra aquele poema do Drummond, sobre o cara que cortou o tempo em fatias, pra vender um recomeço... - Júlio discursava enquanto Gustavo tragando seu cigarro o olhava com atenção.

- Eu sei, cara. Essa coisa de ano novo, réveillon, é palhaçada comercial. Galera aproveita pra vender a hora certa da mudança, mas não muda porra nenhuma... - disse sorrindo, cinicamente.

- O tempo é uma ilusão, a hora certa é uma ilusão ainda maior. - Júlio respondeu, levantou a mão e acenou para o dono do bar, retirou a garrafa vazia da capa térmica em que estava, outra ocuparia seu lugar logo.

- E como é que estão seus planos pro ano que vem? Vai continuar nesse trampo? - Gustavo perguntou, dando continuidade a conversa de alguns minutos antes de chegarem ao bar.

Júlio abriu a boca para responder, mas sua atenção fora roubada por um menino, de uns onze anos mais ou menos, negro, magro, sujo, que tentava vender balas para os poucos clientes que estavam no bar. Júlio apenas o dispensou com um sinal de mão, o menino saiu oferecendo suas balas para outros, sem dar atenção ao fato de que o Gustavo não tirava os olhos do menino, Júlio retoma o assunto.

- Cara, eu não sei. Até quero ficar lá, mas dirigir quarenta quilômetros pra ir e mais quarenta pra voltar todos os dias tá me deixando cansado, além de sair bem caro. Essa semana a gasolina aumentou mais uma vez, a expectativa é que chegue a até seis reais o litro antes do carnaval. Tá foda...

- foda... - os olhos de Gustavo ainda estavam no menino, que agora sentado na calçada contava moedas.

- Mas, tirando isso, tá sendo uma boa trabalhar lá, tem um boteco muito bom no caminho, sempre paro lá quando estou voltando pra casa.

Gustavo olhava para o celular, parecia esperar algo, bebia em goladas longas e tinha as mãos inquietas, ora com o cigarro e isqueiro, ora com os dedos tamborilando na mesa. Seu pensamento vagava pelos ermos desconhecidos da mente alheia, pelo celular, pelo menino, pelo compromisso marcado para as dezoito horas em ponto, pelas duas cartas que devia ter despachado antes do recesso e acabou se esquecendo... Seu pensamento vagava muito além dali, não estava preocupado com o trabalho de Júlio, com o ano novo ou com o preço da gasolina, já eram quase três da tarde e seu compromisso inadiável se aproximava.

- ô Júlio, acho que vou nessa, tenho uma parada pra fazer mais tarde...

- Beleza Gu, mas aí, se cê não for fazer nada, passa lá em casa mais tarde, vamo queimar uma carne e tomar umas breja, de lá de casa dá pra ver os fogos de artifício, vai ser massa.

- Beleza, qualquer coisa eu te ligo. - Gustavo abraçou Júlio, se despediu, deixou duas notas de dez reais sob a comanda na mesa, acenou para o dono do bar novamente e se despediu também dele.

Quando abria a porta de seu carro, o menino das balas o abordou novamente.
- Ô Tio, compra uma bala aí, só pra me ajudar, tô desde cedo aqui. - argumentou.

Gustavo olhava para ele e não sabia o que sentia, via na pele do menino a própria pele, no olhar constrangido seus próprios constrangimentos. Tirou a carteira e pegou a única cédula que nela havia. O menino parecia assustado e hesitante em aceitar aquela nota.

- Feliz ano novo pr'ocê, vai pra casa. - Entrou no automóvel sem ouvir o garoto agradecer, mas enquanto virava a esquina podia ver o sorriso no rosto dele pelo espelho retrovisor.

No caminho para casa, de minuto em minuto Gustavo olhava para o celular, nada de novo. Passou por sua cabeça a ideia boba de não ir pra casa, de procurar algum outro amigo, ou algum outro bar, ou de voltar até aquele menino e perguntar sobre a vida dele, ou o levar em uma lanchonete ou uma loja de tênis,  ou qualquer outra coisa que o atrasasse mas decidiu que era melhor não, pensou em desmarcar o compromisso de hoje a noite, mas não havia porque. Ao chegar em seu apartamento, tirou um cochilo, tomou um banho demorado, pegou um banquinho e colocou na sacada, foi até a geladeira, abriu uma cerveja, acendeu mais um cigarro e ficou olhando o sol se pôr do nono andar, buscava alguma vibração, alguma notícia em seu celular, mas esse estava inerte.
Às dezessete horas e cinquenta e nove minutos ele tira os chinelos e a camiseta. Termina sua cerveja, joga a bituca do cigarro lá em baixo, a observa cair devagar. Alguns segundos depois, Gustavo sobe no banquinho, fica em pé no parapeito e dá um passo no ar, e mais um passo, e outro, Gustavo sente o vento frio batendo forte, suspira, flutua no céu. Às dezoito horas e um minuto, o celular esquecido no parapeito da sacada toca incansavelmente, longe dos olhos e ouvidos de Gustavo, que já não enxerga ou escuta nada.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

O mártir e o pirilampo

Resultado de imagem para sao sebastião arte" O vagalume estava pousado sobre a pequena estatueta de São Sebastião, estática no altar da capela. O cheiro de flores que se misturava ao cheiro das velas, da terra molhada pelo sereno noturno,  das pessoas, do café sendo coado na pequena cantina, da madeira nova e recém envernizada sustentando o telhado e à fumaça do cigarro que queimava na ponta dos dedos da viúva na escadinha de dois degraus, era tão autêntico que não poderia ser encontrado em qualquer outro lugar se não ali. Meus olhos voltam aos olhos do santo que tinha um luzeiro no ombro esquerdo. Busco compreender sua expressão, sua dor tão bem retratada pelo santeiro, há muitos anos falecido, Jurandir Silveira, que doou a imagem na primeira missa celebrada após a construção da capela. Lembro me de dona Tiná, a beata, tirando a poeira do santo com um lenço enquanto cantava um hino, quase incompreensível em sua voz envelhecida e rouca. A mesma voz que agora além de carregar a velhice e rouquidão, reza um terço com a dor que só uma mãe sente ao perder um filho.
O santo tem os olhos voltados pro alto, a boca entreaberta, a testa franzida, o corpo magro varado por três flechas. Sem perceber eu imitava suas feições, mesmo que ninguém tenha notado envergonhou-me um pouco. A filha de minha tia dorme com a cabeça em meu colo, meus dedos passam por seus cabelos cacheados, o vagalume continua iluminando o mártir das três flechas, as vezes uma ou outra pessoa se aproxima do caixão, fica parado por algum tempo e depois volta para um dos bancos de madeira. Um copo cai na cantina, quebra o quase silêncio, todos olham ao mesmo tempo na direção da porta. A tia do rapaz que morreu passa pela porta chorando baixinho, logo atrás vem sua filha lhe trazendo um copo d'água. Gabriele que dormia em meu colo acorda com o contido alvoroço. Esfrega os olhos, olha ao redor, senta-se ao meu lado, dentro do meu abraço.
 - Theus, onde tá minha mãe?
Digo que ela está na casa velha, ao lado da capela com o pessoal. Pergunto se ela quer ir embora, ela me diz que não.
Aponto pro santo com a luzinha no ombro, mostro à menina o vagalume. Ela ri.
Talvez ela seja ainda jovem demais pra entender essas coisas da morte, essas coisas de velórios e terços sendo rezados baixinhos.
Eu e Gabriele conversamos um pouco, falo com ela dos santos, nós brincamos de inventar uma história para o São Sebastião, ou como ela o reinventou Seu Tião da Goiabeira (eu disse a ela que ele morreu amarrado em um pé de goiaba), nós deixamos o tempo passar na infantilidade das histórias inventadas, nos vagalumes que iluminam homens agonizantes e santificados. Nessa conversa distraída, o sol lentamente se ergue atrás da capelinha, o sepultamento será em breve, é o último amanhecer daquele jovem homem de trinta sobre a terra. O vagalume, foi embora sem se despedir, nós não o vimos voar, talvez tenha ido iluminar outros santos que precisassem mais de sua luz.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Final de outubro

Enquanto fumava um cigarro, durante um curto intervalo no trabalho, parei no meio da rua e olhei para as montanhas. A chuva vinha em minha direção, era bonito. Eu a pude ver se aproximando, molhando o asfalto com suas gotas grossas e seu barulho confortante. O cheiro de terra molhada me lembra de quando éramos crianças. A rua de terra em que cresci, quando chovia, tornava-se um grande lamaçal no qual poucos se atreviam a caminhar. Para nós, os pequenos demônios, criados descalços e acostumados com o tipo de diversão que era comum às crianças pobres dos anos noventa, esse lamaçal era a garantia de histeria infantil e boas correiadas aplicadas por nossas mães, angustiadas e aterrorizadas com a imundície de nossas roupas. 

-
"Y los sueños, sueños son" -
 

A chuva me molha, apaga meu cigarro.
A infância volta a ser um lampejo cada vez mais distante, mais doloroso, mais nostálgico.
Com as roupas molhadas e com saudades da rua de terra em que cresci, retorno ao trabalho.


sexta-feira, 20 de setembro de 2019

O Casaco



A escuridão fresca de final de inverno se deitava sobre o teto, embora a poluição tornasse impossível ver as numerosas estrelas que deveriam brilhar na noite de lua nova, havia um céu grisalho e até bonito se misturando aos morros cobertos de casebres lá longe, no limite da visão. Sobre a mesa, dois copos, ao redor dela, duas pessoas que tentavam se entender numa conversa distraída que já se estendia desde o cansar do sol vermelho e preguiçoso. 


- Ela me ligou essa noite, era umas três horas já, eu acordei com o telefone vibrando e vi que era ela… - interrompeu a si mesmo para dar um longo gole no copo de cerveja - pensei em atender, mas deixei a chamada cair. - pronunciou enquanto olhava para os lados, como se desviasse de alguém ou procurasse aprovação em algum olhar do outro lado da rua.


- E cê não ficou curioso pra saber o que ela queria dizer? - o amigo perguntou com um cínico sorriso no rosto, como se já tivesse ouvido essa mesma história mil vezes.


- Cara, o que me preocupa é o que ela poderia querer fazer. O que ela tem a dizer pouco me importa. Por isso não atendi… Embora tenha sido mais difícil resistir depois de ela ter feito umas sete chamadas, eu só coloquei o telefone longe de mim
.

- Tem quanto tempo desde a última vez que cês se falaram - os olhos do amigo deixavam claro que ele se referia muito mais do que apenas a conversa.


- Uns dois meses já, e ela esqueceu um casaco lá em casa.


- Tudo que vai volta né… - retrucou o companheiro.



–O CASACO ESQUECIDO–



Na avenida paralela à principal do bairro Betânia, há um longo e espaçoso gramado que separa as duas mãos da avenida, sobre esse gramado existem algumas torres dessas que dão suporte aos fios elétricos de alta tensão. Um espaço muito bem aproveitado pelos donos dos bares que circulam esse grande canteiro, espalhando sobre a grama incontáveis mesas plásticas dessas amarelas ou vermelhas, tão comuns nos botecos de periferia. Por estar perto da faculdade, e por ser um lugar de fácil acesso, tornou-se uma das principais zonas boêmias desse lado da cidade, com seus vários públicos dividindo o mesmo gramado, sob os mesmos fios elétricos enquanto se afogam em cerveja ao som de toda sorte de músicas dos mais variados ritmos que emanam das incontáveis caixinhas de som portáteis que os frequentadores costumam colocar sobre suas mesas. Em um desses bares, Álvaro bebia com seus amigos numa tarde de sábado, depois do sexto ou sétimo litro de cerveja, os já alcoolizados jovens que o acompanhavam decidem ir embora. Agora ele estava sozinho, o telefone sobre a mesa, a orgia de vozes e roncos de motor que se misturavam ao sons das caixinhas portáteis era quase melodioso aos ouvidos naquele momento. Sentia a energia estática gerada pelos cabos de alta tensão arrepiar os pelos de seu braço, uma sensação estranha e agradável, o fazia pensar sobre a possibilidade de que as pessoas que ali estivessem fossem de alguma forma afetadas pelo campo eletromagnético dos cabos, que era de fato perceptível ao contato na pele, depois achou a ideia idiota, e riu de si mesmo por pensar nisso, depois voltou a refletir sobre o assunto pois lembrou-se de que o cérebro funciona por impulsos elétricos, tentou se aprofundar nessa ideia mas ela voltou a parecer estúpida e acabou por deixá-la de lado. Essa ideia ficou vagando no limbo de sua mente, e por vezes ressurge ao pensamento objetivo, até ser novamente descartada. O telefone toca. É ela.



- Oi.


- Oi, cê tá bem?


- Tô, eu quero te ver…


- Posso passar na sua casa?


- Pode sim, cê vem agora? Vou te esperar no portão…


- Tá bem, passo aí em uns cinco minutos.



Menos de trinta segundos de chamada, ele paga a conta e vai pro carro. Sente um pequeno choque ao tocar na lataria, lembra da ideia do campo elétrico novamente e entra no carro. Algumas ruas são percorridas ao som de uma antiga canção sobre bandolins e valsas, antes que ela acabe o carro para em frente ao portão dela. Ela já estava esperando.

A jovem magra e pálida usava um casaco preto de aspecto macio, a porta do carro se abre junto com o elogio:


- Bonito casaco.



Algum tempo depois disso, o casaco bonito estava jogado no chão do quarto, estático e sem forma. A moça de pele pálida mostrava um rosto enrubescido que se apertava contra o travesseiro, o corpo magro, sem roupa, revelava suas curvas e era mais bonito de ser ver. A manhã se anunciava na janela quando o telefone dela tocou, despertando-a de seu curto sono. Foi ao banheiro e voltou pegando suas roupas, vestindo-as com pressa.


- Preciso ir embora, se veste.


De bermuda, camiseta e chinelo ele abre a porta, e depois o portão e depois a porta do carro. Dirige em silêncio até a rua dela.


- Me deixa na esquina, minha mãe tá em casa.


Um breve beijo de despedida e ela se vai.

Ficou parado a observando andar por um tempo, depois foi até a padaria, tomou café e recebeu uma mensagem no celular:



- Meu casaco ficou na sua casa, guarda ele pra mim.

 

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Asas



Já era tarde, ela saiu do banho sem se enxugar, encostou-se na mureta da varanda para fumar um cigarro. Seu corpo bonito e úmido se misturava a penumbra, a brasa e a fumaça davam a ela um ar de triste serenidade. Eis que uma mariposa, dessas que voam buscando a luz, pousa em seu ombro. A moça que já levava a mão em direção ao alado ser, com a intenção de o afugentar, fazê-lo ir procurar repouso em outros ombros, outras varandas, se detém por um instante.
Ela percebe que o inseto com sua longa e espiralada língua, bebia de uma das gotas d'água que cobriam sua pele.
Observou.
Tanto ficou a olhar que nem se deu conta quando seu cigarro se apagou, após ter se queimando em vão. Cigarro cuja fumaça anestesiante para a alma nunca teve concluída sua função.
Tampouco ela percebeu que os minutos passaram, e seu corpo se secara com a brisa morna das noites ipatinguenses. Mas notou que o noturno animal permanecia em seu ombro, mesmo após ter sua sede saciada.
Ela, no entanto, continuava sedenta. Perguntava-se o que era pior, desperdiçar sua vida tentando criar asas ou observando uma mariposa. Que ainda sendo habitante dos ventos, livre como o ar, ali estava. Pousada em seu ombro.
por alguns segundos ela cochilou, despertando de súbito, se deu conta de que a sombria borboleta havia partido. Não existem muitas palavras que poderiam descrever o que sentia, ela não pensava em palavras. Teria que acordar em breve para trabalhar e nem havia dormido ainda.
O aperto em seu peito, causado pela efêmera presença daquele inseto…
Ainda lhe roubaria o sono por muitas outras noites.