sexta-feira, 20 de setembro de 2019

O Casaco



A escuridão fresca de final de inverno se deitava sobre o teto, embora a poluição tornasse impossível ver as numerosas estrelas que deveriam brilhar na noite de lua nova, havia um céu grisalho e até bonito se misturando aos morros cobertos de casebres lá longe, no limite da visão. Sobre a mesa, dois copos, ao redor dela, duas pessoas que tentavam se entender numa conversa distraída que já se estendia desde o cansar do sol vermelho e preguiçoso. 


- Ela me ligou essa noite, era umas três horas já, eu acordei com o telefone vibrando e vi que era ela… - interrompeu a si mesmo para dar um longo gole no copo de cerveja - pensei em atender, mas deixei a chamada cair. - pronunciou enquanto olhava para os lados, como se desviasse de alguém ou procurasse aprovação em algum olhar do outro lado da rua.


- E cê não ficou curioso pra saber o que ela queria dizer? - o amigo perguntou com um cínico sorriso no rosto, como se já tivesse ouvido essa mesma história mil vezes.


- Cara, o que me preocupa é o que ela poderia querer fazer. O que ela tem a dizer pouco me importa. Por isso não atendi… Embora tenha sido mais difícil resistir depois de ela ter feito umas sete chamadas, eu só coloquei o telefone longe de mim
.

- Tem quanto tempo desde a última vez que cês se falaram - os olhos do amigo deixavam claro que ele se referia muito mais do que apenas a conversa.


- Uns dois meses já, e ela esqueceu um casaco lá em casa.


- Tudo que vai volta né… - retrucou o companheiro.



–O CASACO ESQUECIDO–



Na avenida paralela à principal do bairro Betânia, há um longo e espaçoso gramado que separa as duas mãos da avenida, sobre esse gramado existem algumas torres dessas que dão suporte aos fios elétricos de alta tensão. Um espaço muito bem aproveitado pelos donos dos bares que circulam esse grande canteiro, espalhando sobre a grama incontáveis mesas plásticas dessas amarelas ou vermelhas, tão comuns nos botecos de periferia. Por estar perto da faculdade, e por ser um lugar de fácil acesso, tornou-se uma das principais zonas boêmias desse lado da cidade, com seus vários públicos dividindo o mesmo gramado, sob os mesmos fios elétricos enquanto se afogam em cerveja ao som de toda sorte de músicas dos mais variados ritmos que emanam das incontáveis caixinhas de som portáteis que os frequentadores costumam colocar sobre suas mesas. Em um desses bares, Álvaro bebia com seus amigos numa tarde de sábado, depois do sexto ou sétimo litro de cerveja, os já alcoolizados jovens que o acompanhavam decidem ir embora. Agora ele estava sozinho, o telefone sobre a mesa, a orgia de vozes e roncos de motor que se misturavam ao sons das caixinhas portáteis era quase melodioso aos ouvidos naquele momento. Sentia a energia estática gerada pelos cabos de alta tensão arrepiar os pelos de seu braço, uma sensação estranha e agradável, o fazia pensar sobre a possibilidade de que as pessoas que ali estivessem fossem de alguma forma afetadas pelo campo eletromagnético dos cabos, que era de fato perceptível ao contato na pele, depois achou a ideia idiota, e riu de si mesmo por pensar nisso, depois voltou a refletir sobre o assunto pois lembrou-se de que o cérebro funciona por impulsos elétricos, tentou se aprofundar nessa ideia mas ela voltou a parecer estúpida e acabou por deixá-la de lado. Essa ideia ficou vagando no limbo de sua mente, e por vezes ressurge ao pensamento objetivo, até ser novamente descartada. O telefone toca. É ela.



- Oi.


- Oi, cê tá bem?


- Tô, eu quero te ver…


- Posso passar na sua casa?


- Pode sim, cê vem agora? Vou te esperar no portão…


- Tá bem, passo aí em uns cinco minutos.



Menos de trinta segundos de chamada, ele paga a conta e vai pro carro. Sente um pequeno choque ao tocar na lataria, lembra da ideia do campo elétrico novamente e entra no carro. Algumas ruas são percorridas ao som de uma antiga canção sobre bandolins e valsas, antes que ela acabe o carro para em frente ao portão dela. Ela já estava esperando.

A jovem magra e pálida usava um casaco preto de aspecto macio, a porta do carro se abre junto com o elogio:


- Bonito casaco.



Algum tempo depois disso, o casaco bonito estava jogado no chão do quarto, estático e sem forma. A moça de pele pálida mostrava um rosto enrubescido que se apertava contra o travesseiro, o corpo magro, sem roupa, revelava suas curvas e era mais bonito de ser ver. A manhã se anunciava na janela quando o telefone dela tocou, despertando-a de seu curto sono. Foi ao banheiro e voltou pegando suas roupas, vestindo-as com pressa.


- Preciso ir embora, se veste.


De bermuda, camiseta e chinelo ele abre a porta, e depois o portão e depois a porta do carro. Dirige em silêncio até a rua dela.


- Me deixa na esquina, minha mãe tá em casa.


Um breve beijo de despedida e ela se vai.

Ficou parado a observando andar por um tempo, depois foi até a padaria, tomou café e recebeu uma mensagem no celular:



- Meu casaco ficou na sua casa, guarda ele pra mim.

 

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Asas



Já era tarde, ela saiu do banho sem se enxugar, encostou-se na mureta da varanda para fumar um cigarro. Seu corpo bonito e úmido se misturava a penumbra, a brasa e a fumaça davam a ela um ar de triste serenidade. Eis que uma mariposa, dessas que voam buscando a luz, pousa em seu ombro. A moça que já levava a mão em direção ao alado ser, com a intenção de o afugentar, fazê-lo ir procurar repouso em outros ombros, outras varandas, se detém por um instante.
Ela percebe que o inseto com sua longa e espiralada língua, bebia de uma das gotas d'água que cobriam sua pele.
Observou.
Tanto ficou a olhar que nem se deu conta quando seu cigarro se apagou, após ter se queimando em vão. Cigarro cuja fumaça anestesiante para a alma nunca teve concluída sua função.
Tampouco ela percebeu que os minutos passaram, e seu corpo se secara com a brisa morna das noites ipatinguenses. Mas notou que o noturno animal permanecia em seu ombro, mesmo após ter sua sede saciada.
Ela, no entanto, continuava sedenta. Perguntava-se o que era pior, desperdiçar sua vida tentando criar asas ou observando uma mariposa. Que ainda sendo habitante dos ventos, livre como o ar, ali estava. Pousada em seu ombro.
por alguns segundos ela cochilou, despertando de súbito, se deu conta de que a sombria borboleta havia partido. Não existem muitas palavras que poderiam descrever o que sentia, ela não pensava em palavras. Teria que acordar em breve para trabalhar e nem havia dormido ainda.
O aperto em seu peito, causado pela efêmera presença daquele inseto…
Ainda lhe roubaria o sono por muitas outras noites.