segunda-feira, 9 de setembro de 2019
O Canto do Sofrê
O canto de um pássaro chamou a atenção do menino. Olhando pra fora da janela, com um olhar hábil e curioso, tentou encontrá-lo. Seus olhos se perdiam no labirinto de galhos secos da grande castanheira que se erguia no gramado, pra lá do pátio da escola. “Será que é um sofrê?” pensava enquanto buscava o bicho.
A sala de aula estava estranhamente silenciosa, naquela manhã fresca. O professor falava com alguma empolgação sobre advérbios ou adjetivos, pro garoto não fazia muita diferença, mas prendia a atenção da turma. Não a atenção de Fábio, esta estava totalmente voltada para o pássaro que lhe trazia lembranças de quando ainda mais novo, caminhava pela floresta do Macuco caçando teiús, jacus e outros animais com seu pai e irmão. O velho caçador, de pouca instrução e muito conhecimento da mata o havia ensinado muito sobre os bichos e sobre as plantas daquela região. Ele aprendeu muito cedo sobre essas coisas, aos seus treze anos já sabia muito da medicina da floresta e do amor e respeito por tudo o que crescia, aprendeu tudo sobre como se comportam os pássaros, em quais buracos se escondem os tatus, como evitar as cobras, quais são as iscas certas para cada peixe, sabia como andar no mato sem fazer barulho, como subir nas árvores sem espantar as aves, sabia de longe qual era o macho e qual era a fêmea no casal de sanhaços. O canto daquele pássaro soava ainda mais alto enquanto ele se perdia em suas lembranças.
“É um sofrê mesmo!” Afirmou sem perceber que falava em voz alta.
- O que disse Fábio? - perguntou o professor, com ar de quem não havia entendido.
- Nada não fessor, nada não.
O professor deu de ombros com um sorriso e continuou a sua aula.
O garoto esticava o pescoço e apertava os olhos para enxergar melhor, percebia uma movimentação na árvore, mas ainda não havia encontrado o pássaro.
Do lado de fora, a grande castanheira deixava suas folhas caírem ao vento suave, mais além, haviam os muros da escola, além dos muros haviam as colinas e a floresta. Uma paisagem bonita demais pra ser vista de longe. Fábio não entendia o porquê de estar preso na sala de concreto, com tanto verde lá fora. Do que adiantava saber qual substantivo é epiceno se os pássaros estavam cantando nos arvoredos, se além da sala abafada havia a sombra das árvores sobre a vegetação rasteira das colinas, ainda úmida do orvalho da noite anterior. O menino nem percebia que estava ajoelhado sobre a cadeira, com o rosto pra fora da janela. Algo se movia, um vulto alaranjado e preto, era um sofrê! A empolgação no rosto do menino era nítida, embora ninguém a tivesse visto, além de, talvez, o pássaro que era objeto de sua observação. A ave de cores contrastantes estava em um galho próximo, cantava, como se estivesse chamando alguém, parecia um lamento ou uma súplica. O menino sentia que aquele canto era pra ele, e por sua cabeça passava agora a ideia talvez boba de que o pássaro também o procurava, que o chamava pra subir na castanheira, pra cantar uma melodia canora aos assobios. A sala de aula já não existia, nem ouvia mais a voz do professor. O mundo se reduziu ao pequeno espaço entre ele na janela e o sofrê na árvore. O cheiro de mato molhado, trazido pela brisa de final de inverno se fundia ao som do canto e a luz dourada da manhã no verde da paisagem que se estendia a sua frente, embora Fábio não conhecesse a palavra sinestesia, ele percebia com prazer e um aperto morno no peito essa mistura de sensações. O professor o desperta de seu transe.
- Vamos, Fábio? - Disse o homem tocando em seu ombro
O menino nem havia se dado conta de que a aula acabara e os colegas já haviam saído.
O professor olha pela janela, tentando entender o que o menino tanto olhava:
- Tá bonito lá fora né? Que cê tá vendo aí?
- Tem um sofrê ali, fessor. Tem muito tempo que num aparece dele aqui. Mas tô achando estranho que ele tá sozinho, sofrê só anda de casal… - Fábio responde com tom misto de convicção e curiosidade.
O professor já o esperava na porta da sala, o garoto guarda seu material, quase sem tirar a vista da janela. Caminha lentamente até a porta, e percebe com o canto do olho, outro pássaro igualzinho ao que ele observava se juntar ao primeiro. O sorriso se abre ao passar pela porta. Ele sabia que tinha uma fêmea ali.
Embora ele não fosse se lembrar de nada do que foi dito durante as aulas, aquela manhã ficou gravada em sua memória, ele ainda se lembraria dela com saudade nos anos futuros, quando fosse falar para seus filhos sobre todos os bichos que haviam ali e que já não existiam mais…
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