segunda-feira, 18 de novembro de 2019

O mártir e o pirilampo

Resultado de imagem para sao sebastião arte" O vagalume estava pousado sobre a pequena estatueta de São Sebastião, estática no altar da capela. O cheiro de flores que se misturava ao cheiro das velas, da terra molhada pelo sereno noturno,  das pessoas, do café sendo coado na pequena cantina, da madeira nova e recém envernizada sustentando o telhado e à fumaça do cigarro que queimava na ponta dos dedos da viúva na escadinha de dois degraus, era tão autêntico que não poderia ser encontrado em qualquer outro lugar se não ali. Meus olhos voltam aos olhos do santo que tinha um luzeiro no ombro esquerdo. Busco compreender sua expressão, sua dor tão bem retratada pelo santeiro, há muitos anos falecido, Jurandir Silveira, que doou a imagem na primeira missa celebrada após a construção da capela. Lembro me de dona Tiná, a beata, tirando a poeira do santo com um lenço enquanto cantava um hino, quase incompreensível em sua voz envelhecida e rouca. A mesma voz que agora além de carregar a velhice e rouquidão, reza um terço com a dor que só uma mãe sente ao perder um filho.
O santo tem os olhos voltados pro alto, a boca entreaberta, a testa franzida, o corpo magro varado por três flechas. Sem perceber eu imitava suas feições, mesmo que ninguém tenha notado envergonhou-me um pouco. A filha de minha tia dorme com a cabeça em meu colo, meus dedos passam por seus cabelos cacheados, o vagalume continua iluminando o mártir das três flechas, as vezes uma ou outra pessoa se aproxima do caixão, fica parado por algum tempo e depois volta para um dos bancos de madeira. Um copo cai na cantina, quebra o quase silêncio, todos olham ao mesmo tempo na direção da porta. A tia do rapaz que morreu passa pela porta chorando baixinho, logo atrás vem sua filha lhe trazendo um copo d'água. Gabriele que dormia em meu colo acorda com o contido alvoroço. Esfrega os olhos, olha ao redor, senta-se ao meu lado, dentro do meu abraço.
 - Theus, onde tá minha mãe?
Digo que ela está na casa velha, ao lado da capela com o pessoal. Pergunto se ela quer ir embora, ela me diz que não.
Aponto pro santo com a luzinha no ombro, mostro à menina o vagalume. Ela ri.
Talvez ela seja ainda jovem demais pra entender essas coisas da morte, essas coisas de velórios e terços sendo rezados baixinhos.
Eu e Gabriele conversamos um pouco, falo com ela dos santos, nós brincamos de inventar uma história para o São Sebastião, ou como ela o reinventou Seu Tião da Goiabeira (eu disse a ela que ele morreu amarrado em um pé de goiaba), nós deixamos o tempo passar na infantilidade das histórias inventadas, nos vagalumes que iluminam homens agonizantes e santificados. Nessa conversa distraída, o sol lentamente se ergue atrás da capelinha, o sepultamento será em breve, é o último amanhecer daquele jovem homem de trinta sobre a terra. O vagalume, foi embora sem se despedir, nós não o vimos voar, talvez tenha ido iluminar outros santos que precisassem mais de sua luz.