terça-feira, 10 de setembro de 2019

Canção de ninar


“João corta pau, Maria mexe angu, Tereza arruma a mesa para a festa do tatu”
Os versinhos bobos e despreocupados do sentido saem dos lábios da avó, repetem-se, ecoam pela casa velha. Nos braços a criança que já próxima do sono, parece achar engraçado a cantoria da anciã, exala um cheiro de bebê, de talco e de vida. Pobre criança, se pelo menos pudesse discernir o cheiro de morte que o rodeia e entristece a casa, não seria tão àvido em esbanjar vida com seus berros noturnos, com seus risinhos e soluços. Pobre criança.
“João corta pau, Maria mexe angu, Tereza arruma a mesa para a festa do tatu”
A mão enrugada apoia a cabeça. Da boca ressecada pelas décadas, pelo sol, pela escassez, um beijo na fronte, entre o “tatu” e “João” outra vez. O netinho no colo é mais leve que as sacas de café, mais macio que as esteiras de dormir, mais quente que a madrugada na lavoura, até mesmo mais bonito que os filhos que sobreviveram de teimosia ou os que morreram de fome ou de doença.
E ainda assim, o pequeno pacote morno e mole que agora lutava contra o sono, como a mosca luta contra a teia da aranha, trazia um peso maior que qualquer bruaca de carga que se possa colocar no lombo de uma mula, uma dureza mais dura que qualquer chão de terra seca que se tenha que arar, uma frieza mais gelada que qualquer virada de cerração na beira do brejo, quando a geada destrói o arrozal, e trazia ainda, o mais feio dos pecados, o pior crime que se pode conceber, uma crueza tão doída que a velha se arrepia a cada expressão sonolenta no rosto do pequeno. O crime cometido: matar a mãe.
Não que não seja comum a morte de parto por essas bandas. Vez ou outra se fala sobre isso. O que não se fala é sobre a semente que fica.
Uma mulher jovem vai pra cova. Da cova brota um ramo.
A avó não sabe o que dói mais. O luto pela filha mais nova, ou a herança viva, que saudável e sereno, dorme em seu colo. Que em breve irá correr pela casa, a chamá-la, provavelmente, de mãe.
Mãe.
Pensar nessa palavra a faria escorrer uma lágrima, se já não tivesse chorado todas. Se lembrava ainda com clareza e quase podia ouvir, a finada caçula, a chamar da cozinha: “mãe, café tá pronto!”
O peito aperta. O abraço que envolve o matricida também.
“Era a fia mais boa que'u tinha”
Pensa.
Um suspiro tristonho e a canção continua:
“João corta pau…”

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