A escuridão fresca de final de inverno se deitava sobre o
teto, embora a poluição tornasse impossível ver as numerosas estrelas que
deveriam brilhar na noite de lua nova, havia um céu grisalho e até bonito se
misturando aos morros cobertos de casebres lá longe, no limite da visão. Sobre
a mesa, dois copos, ao redor dela, duas pessoas que tentavam se entender numa
conversa distraída que já se estendia desde o cansar do sol vermelho e
preguiçoso.
- Ela me ligou essa noite, era umas três horas já, eu
acordei com o telefone vibrando e vi que era ela… - interrompeu a si mesmo para
dar um longo gole no copo de cerveja - pensei em atender, mas deixei a chamada
cair. - pronunciou enquanto olhava para os lados, como se desviasse de alguém
ou procurasse aprovação em algum olhar do outro lado da rua.
- E cê não ficou curioso pra saber o que ela queria dizer? -
o amigo perguntou com um cínico sorriso no rosto, como se já tivesse ouvido
essa mesma história mil vezes.
- Cara, o que me preocupa é o que ela poderia querer fazer.
O que ela tem a dizer pouco me importa. Por isso não atendi… Embora tenha sido
mais difícil resistir depois de ela ter feito umas sete chamadas, eu só
coloquei o telefone longe de mim
.
- Tem quanto tempo desde a última vez que cês se falaram -
os olhos do amigo deixavam claro que ele se referia muito mais do que apenas a
conversa.
- Uns dois meses já, e ela esqueceu um casaco lá em casa.
- Tudo que vai volta né… - retrucou o companheiro.
–O CASACO ESQUECIDO–
Na avenida paralela à principal do bairro Betânia, há um
longo e espaçoso gramado que separa as duas mãos da avenida, sobre esse gramado
existem algumas torres dessas que dão suporte aos fios elétricos de alta
tensão. Um espaço muito bem aproveitado pelos donos dos bares que circulam esse
grande canteiro, espalhando sobre a grama incontáveis mesas plásticas dessas
amarelas ou vermelhas, tão comuns nos botecos de periferia. Por estar perto da
faculdade, e por ser um lugar de fácil acesso, tornou-se uma das principais
zonas boêmias desse lado da cidade, com seus vários públicos dividindo o mesmo
gramado, sob os mesmos fios elétricos enquanto se afogam em cerveja ao som de
toda sorte de músicas dos mais variados ritmos que emanam das incontáveis
caixinhas de som portáteis que os frequentadores costumam colocar sobre suas
mesas. Em um desses bares, Álvaro bebia com seus amigos numa tarde de sábado,
depois do sexto ou sétimo litro de cerveja, os já alcoolizados jovens que o
acompanhavam decidem ir embora. Agora ele estava sozinho, o telefone sobre a
mesa, a orgia de vozes e roncos de motor que se misturavam ao sons das
caixinhas portáteis era quase melodioso aos ouvidos naquele momento. Sentia a
energia estática gerada pelos cabos de alta tensão arrepiar os pelos de seu
braço, uma sensação estranha e agradável, o fazia pensar sobre a possibilidade
de que as pessoas que ali estivessem fossem de alguma forma afetadas pelo campo
eletromagnético dos cabos, que era de fato perceptível ao contato na pele,
depois achou a ideia idiota, e riu de si mesmo por pensar nisso, depois voltou
a refletir sobre o assunto pois lembrou-se de que o cérebro funciona por
impulsos elétricos, tentou se aprofundar nessa ideia mas ela voltou a parecer
estúpida e acabou por deixá-la de lado. Essa ideia ficou vagando no limbo de
sua mente, e por vezes ressurge ao pensamento objetivo, até ser novamente
descartada. O telefone toca. É ela.
- Oi.
- Oi, cê tá bem?
- Tô, eu quero te ver…
- Posso passar na sua casa?
- Pode sim, cê vem agora? Vou te esperar no portão…
- Tá bem, passo aí em uns cinco minutos.
Menos de trinta segundos de chamada, ele paga a conta e vai
pro carro. Sente um pequeno choque ao tocar na lataria, lembra da ideia do
campo elétrico novamente e entra no carro. Algumas ruas são percorridas ao som
de uma antiga canção sobre bandolins e valsas, antes que ela acabe o carro para
em frente ao portão dela. Ela já estava esperando.
A jovem magra e pálida usava um casaco preto de aspecto
macio, a porta do carro se abre junto com o elogio:
- Bonito casaco.
Algum tempo depois disso, o casaco bonito estava jogado no
chão do quarto, estático e sem forma. A moça de pele pálida mostrava um rosto
enrubescido que se apertava contra o travesseiro, o corpo magro, sem roupa,
revelava suas curvas e era mais bonito de ser ver. A manhã se anunciava na
janela quando o telefone dela tocou, despertando-a de seu curto sono. Foi ao
banheiro e voltou pegando suas roupas, vestindo-as com pressa.
- Preciso ir embora, se veste.
De bermuda, camiseta e chinelo ele abre a porta, e depois o
portão e depois a porta do carro. Dirige em silêncio até a rua dela.
- Me deixa na esquina, minha mãe tá em casa.
Um breve beijo de despedida e ela se vai.
Ficou parado a observando andar por um tempo, depois foi até
a padaria, tomou café e recebeu uma mensagem no celular:
- Meu casaco ficou na sua casa, guarda ele pra mim.
Bonito casaco...
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