O santo tem os olhos voltados pro alto, a boca entreaberta, a testa franzida, o corpo magro varado por três flechas. Sem perceber eu imitava suas feições, mesmo que ninguém tenha notado envergonhou-me um pouco. A filha de minha tia dorme com a cabeça em meu colo, meus dedos passam por seus cabelos cacheados, o vagalume continua iluminando o mártir das três flechas, as vezes uma ou outra pessoa se aproxima do caixão, fica parado por algum tempo e depois volta para um dos bancos de madeira. Um copo cai na cantina, quebra o quase silêncio, todos olham ao mesmo tempo na direção da porta. A tia do rapaz que morreu passa pela porta chorando baixinho, logo atrás vem sua filha lhe trazendo um copo d'água. Gabriele que dormia em meu colo acorda com o contido alvoroço. Esfrega os olhos, olha ao redor, senta-se ao meu lado, dentro do meu abraço.
- Theus, onde tá minha mãe?
Digo que ela está na casa velha, ao lado da capela com o pessoal. Pergunto se ela quer ir embora, ela me diz que não.
Aponto pro santo com a luzinha no ombro, mostro à menina o vagalume. Ela ri.
Talvez ela seja ainda jovem demais pra entender essas coisas da morte, essas coisas de velórios e terços sendo rezados baixinhos.
Eu e Gabriele conversamos um pouco, falo com ela dos santos, nós brincamos de inventar uma história para o São Sebastião, ou como ela o reinventou Seu Tião da Goiabeira (eu disse a ela que ele morreu amarrado em um pé de goiaba), nós deixamos o tempo passar na infantilidade das histórias inventadas, nos vagalumes que iluminam homens agonizantes e santificados. Nessa conversa distraída, o sol lentamente se ergue atrás da capelinha, o sepultamento será em breve, é o último amanhecer daquele jovem homem de trinta sobre a terra. O vagalume, foi embora sem se despedir, nós não o vimos voar, talvez tenha ido iluminar outros santos que precisassem mais de sua luz.