"Para evitar um equívoco verbal: o que deve ser ativamente destruído
precisa antes ter sido sustentado com firmeza total;
o que desmorona
desmorona, mas não pode ser destruído"
-Franz Kafka
Helena se levantou da cama, foi até a velha mesinha de madeira que ficava no canto do quarto e pegou o maço de cigarros, puxou um deles com os lábios, como num beijo demorado. Levou a mão ao bolso do short que jazia no encosto da cadeira e sacou um isqueiro.
A luz da chama titubeante captou a atenção de Júlio, que por
baixo de pálpebras preguiçosas olhava o corpo de Helena na penumbra.
- Quê isso? - a pergunta tendenciosa estava carregada de
julgamento.
Helena caminha em direção a cama com leveza, enquanto solta
a fumaça pelas narinas. Olha pro cigarro em seus dedos e diz:
- Isso aqui? É cigarro... - ela sabia que a ironia irritava
Júlio mais do que qualquer coisa.
- Achei que cê tava parando. Tem mais de mês já, apaga essa
porra. - não podia esconder sua frustração.
- Eu tô tentando, mas agora eu quero fumar. E eu vou fumar.
- a voz firme quase não combinava com ela, ajoelhou-se na cama, com o rosto e
os ombros na altura da janela, uma brisa noturna mexia seus cabelos e espalhava
a fumaça pelo quarto.
- Tô vendo o quanto cê tá tentando... Cê tem que segurar a
vontade, se não cê não para nunca...-Helena o interrompeu-
- Para, cê não é meu pai. Eu sei das consequências, eu sei o
que isso causa. Não me enche o saco com essa porra. - o silêncio que seguiu
essas palavras era ensurdecedor. Nenhum dos dois dizia palavra.
Júlio se levanta. Sem tirar os olhos da janela Helena o observa com os ouvidos,
rastreando o som de seus passos indo para o banheiro, fechando a porta de vidro
do box, abrindo o chuveiro, deixando a água cair nos seus ombros sem se mover sob ela.
- um
conhaque e um maço cigarros -
A segunda feira seguia calma como era de costume, e como era
de costume o bar abriu as dezessete horas em ponto. O dono do bar estava sentado na escada
que havia atrás do balcão, escada que conectava o boteco de esquina ao piso
superior do imóvel, onde morava com sua esposa e suas duas filhas. A filha mais
velha, que não tinha ainda treze anos completos, ninava a mais nova,
recém-nascida e setemesinha num balaio acolchoado sobre o velho sofá, atrás
daquele mesmo balcão. O homem de meia idade tinha os olhos no jornal em suas
mãos, um desses baratos que naquele tempo se comprava por vinte e cinco
centavos. Sua audição canina o atina a olhar para além do balcão, um menino se
aproximava com uma nota de cinco reais na mão.
- Boa tarde - a voz grave do homem, que se levantava o fazia
parecer mais alto. Ele olhava o menino de cima para baixo. - Quê que cê quer?
- Um conhaque e um maço de cigarro, por favor.
Por um momento os dois se olharam, em silêncio o homem
grisalho o repreendia com os olhos e uma expressão de negação, sutil, como ele
o era. Apanhou o dinheiro e o colocou com as outras notas na caixinha de
madeira do lado do pote de moedas. Puxou um maço de Hollywood vermelho que
estava no display acima do refrigerador horizontal, sussurrou para si: "o
cigarro do sucesso", colocou o cigarro sobre o balcão, junto ao copo de
vidro tipo americano. Um olhar para a menina que ninava a outra menina, como se
desejasse que ela não o visse naquele momento, enquanto servia a dose de
Dreher, olhou de canto de olho para o sofá uma ou duas vezes. Virou-se de
costas e pegou um punhado de moedas no pote, as colocou na mesa e separou a
parte que cabia ao menino.
- Um e setenta e cinco do cigarro, um do conhaque, dois e
setenta e cinco, tirando de cinco fica dois e vinte e cinco... - Com as pontas
dos dedos fez duas moedas de um e uma de vinte e cinco deslizarem sobre o tampo
de mármore do balcão velho, guardou as restantes. Olhou novamente pro garoto
que deixava seu copo vazio sobre o mesmo tampo de mármore. - Cê tá vindo da
escola agora? - Perguntou
- Não... - colocou as moedas no bolso sem as contar, acendeu
um cigarro e completou - Tô indo pro serviço, vou pegar às dezoito.
O dono do bar sorriu e estendeu a mão para o menino, com
duas balas de hortelã entre os dedos. - Então toma pra refrescar a boca antes
de começar - ofereceu gentilmente.
- Obrigado, seu Augusto. - pegou as balas e saiu com elas na
mão.
Augusto o olhava caminhar até o ponto de ônibus, do outro
lado da rua. Não devia ter catorze anos. Olha novamente para a sua filha e em
silêncio agradece a seu deus por ter tido uma menina tão correta e dedicada à
família.
Júlio sentado no ponto de ônibus termina seu cigarro, tinha algum receio de que alguém de sua família passasse por ali e visse aquele cigarro em sua
mão, embora já tivesse ensaiado seu discurso caso fosse flagrado. O ônibus
chega, o garoto entra. Só retornaria ao seu bairro oito horas depois, por volta
das duas da manhã. Na madrugada, passaria novamente no bar e tomaria mais uma dose.
Fumaria mais um cigarro durante a caminhada até o portão de sua casa. Subiria
as escadas e sem fazer barulho iria tomar um banho e dormir.
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Helena estava deitada quando Júlio voltou do banho, a toalha
molhada estava enrolada em sua cintura, Júlio se encosta na janela e fuma um cigarro,
tenta se lembrar do seu primeiro, mas não consegue. Sente-se envergonhado por
não conseguir parar. Pensa nas palavras de Helena. Vai até a cozinha, dois
copos d'água, bem gelada, pensa nas palavras de Helena, bem geladas. Na pia do
banheiro, escova os dentes, vê sua cara no espelho, a não ser pela barba rala e
falhada não é muito diferente do menino de catorze anos que começava a fumar em
busca de algo que não sabia onde encontrar.
- Amor... Deita aqui... - a voz manhosa e sonolenta que o
convidava a se deitar era o suficiente para o fazer parar de pensar nessas
coisas. Júlio parou por um instante no umbral da porta do quarto e ficou olhando
para o corpo daquela mulher em sua cama, pendurou sua toalha no encosto da
cadeira, por cima do short de Helena e foi deitar com ela.