O Tempo
Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança,
fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar
e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação
e tudo começa outra vez, com outro número
e outra vontade de acreditar
que daqui para diante tudo vai ser diferente.
Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança,
fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar
e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação
e tudo começa outra vez, com outro número
e outra vontade de acreditar
que daqui para diante tudo vai ser diferente.
(Roberto Pompeu de Toledo)
O bar estava abrindo quando os dois homens chegaram, o proprietário os conduziu até uma mesa sob a sombra de uma acácia na calçada, o sol do verão estava a pino. Logo veio uma cerveja gelada e dois copos, um dos que chegaram, que parecia mais habituado ao lugar, gritou pro dono do bar pedindo um maço de cigarros e a senha do wi-fi, o outro serviu os copos.
- Uai Gustavo, pensei que cê tinha parado de fumar - disse Júlio.
- Tinha, mas é fim de ano, depois do réveillon eu paro de novo... - o companheiro respondeu enquanto abria o maço de Hollywood
- ...cadê seu isqueiro? - completou a frase estendendo a mão para Júlio, que o entregou um Bic branco, quase sem gás.
Um carro de som tocando uma música natalina insuportável passava pela segunda vez em frente o bar, intercalando os fragmentos de uma canção clássica com a propaganda de alguma loja de móveis e uma mensagem de feliz ano novo, o som alto interrompia as conversas e atrapalhava as senhoras que dentro de suas casas tentavam assistir televisão, esse era o presente de fim de ano daquela loja de móveis para os moradores do bairro Bethânia.
- ... para os judeus é em setembro, para os chineses é em novembro, e em algumas culturas o tempo nem é dividido em anos, como é na nossa. Isso me lembra aquele poema do Drummond, sobre o cara que cortou o tempo em fatias, pra vender um recomeço... - Júlio discursava enquanto Gustavo tragando seu cigarro o olhava com atenção.
- Eu sei, cara. Essa coisa de ano novo, réveillon, é palhaçada comercial. Galera aproveita pra vender a hora certa da mudança, mas não muda porra nenhuma... - disse sorrindo, cinicamente.
- O tempo é uma ilusão, a hora certa é uma ilusão ainda maior. - Júlio respondeu, levantou a mão e acenou para o dono do bar, retirou a garrafa vazia da capa térmica em que estava, outra ocuparia seu lugar logo.
- E como é que estão seus planos pro ano que vem? Vai continuar nesse trampo? - Gustavo perguntou, dando continuidade a conversa de alguns minutos antes de chegarem ao bar.
Júlio abriu a boca para responder, mas sua atenção fora roubada por um menino, de uns onze anos mais ou menos, negro, magro, sujo, que tentava vender balas para os poucos clientes que estavam no bar. Júlio apenas o dispensou com um sinal de mão, o menino saiu oferecendo suas balas para outros, sem dar atenção ao fato de que o Gustavo não tirava os olhos do menino, Júlio retoma o assunto.
- Cara, eu não sei. Até quero ficar lá, mas dirigir quarenta quilômetros pra ir e mais quarenta pra voltar todos os dias tá me deixando cansado, além de sair bem caro. Essa semana a gasolina aumentou mais uma vez, a expectativa é que chegue a até seis reais o litro antes do carnaval. Tá foda...
- foda... - os olhos de Gustavo ainda estavam no menino, que agora sentado na calçada contava moedas.
- Mas, tirando isso, tá sendo uma boa trabalhar lá, tem um boteco muito bom no caminho, sempre paro lá quando estou voltando pra casa.
Gustavo olhava para o celular, parecia esperar algo, bebia em goladas longas e tinha as mãos inquietas, ora com o cigarro e isqueiro, ora com os dedos tamborilando na mesa. Seu pensamento vagava pelos ermos desconhecidos da mente alheia, pelo celular, pelo menino, pelo compromisso marcado para as dezoito horas em ponto, pelas duas cartas que devia ter despachado antes do recesso e acabou se esquecendo... Seu pensamento vagava muito além dali, não estava preocupado com o trabalho de Júlio, com o ano novo ou com o preço da gasolina, já eram quase três da tarde e seu compromisso inadiável se aproximava.
- ô Júlio, acho que vou nessa, tenho uma parada pra fazer mais tarde...
- Beleza Gu, mas aí, se cê não for fazer nada, passa lá em casa mais tarde, vamo queimar uma carne e tomar umas breja, de lá de casa dá pra ver os fogos de artifício, vai ser massa.
- Beleza, qualquer coisa eu te ligo. - Gustavo abraçou Júlio, se despediu, deixou duas notas de dez reais sob a comanda na mesa, acenou para o dono do bar novamente e se despediu também dele.
Quando abria a porta de seu carro, o menino das balas o abordou novamente.
- Ô Tio, compra uma bala aí, só pra me ajudar, tô desde cedo aqui. - argumentou.
Gustavo olhava para ele e não sabia o que sentia, via na pele do menino a própria pele, no olhar constrangido seus próprios constrangimentos. Tirou a carteira e pegou a única cédula que nela havia. O menino parecia assustado e hesitante em aceitar aquela nota.
- Feliz ano novo pr'ocê, vai pra casa. - Entrou no automóvel sem ouvir o garoto agradecer, mas enquanto virava a esquina podia ver o sorriso no rosto dele pelo espelho retrovisor.
No caminho para casa, de minuto em minuto Gustavo olhava para o celular, nada de novo. Passou por sua cabeça a ideia boba de não ir pra casa, de procurar algum outro amigo, ou algum outro bar, ou de voltar até aquele menino e perguntar sobre a vida dele, ou o levar em uma lanchonete ou uma loja de tênis, ou qualquer outra coisa que o atrasasse mas decidiu que era melhor não, pensou em desmarcar o compromisso de hoje a noite, mas não havia porque. Ao chegar em seu apartamento, tirou um cochilo, tomou um banho demorado, pegou um banquinho e colocou na sacada, foi até a geladeira, abriu uma cerveja, acendeu mais um cigarro e ficou olhando o sol se pôr do nono andar, buscava alguma vibração, alguma notícia em seu celular, mas esse estava inerte.
Às dezessete horas e cinquenta e nove minutos ele tira os chinelos e a camiseta. Termina sua cerveja, joga a bituca do cigarro lá em baixo, a observa cair devagar. Alguns segundos depois, Gustavo sobe no banquinho, fica em pé no parapeito e dá um passo no ar, e mais um passo, e outro, Gustavo sente o vento frio batendo forte, suspira, flutua no céu. Às dezoito horas e um minuto, o celular esquecido no parapeito da sacada toca incansavelmente, longe dos olhos e ouvidos de Gustavo, que já não enxerga ou escuta nada.